Luto para além da morte: uma perspectiva psicanalítica
Este artigo propõe uma reflexão sobre as diversas faces do luto e de como quem migra está suscetível a esse tipo de sofrimento.
Luto Para Além da Morte: Uma Perspectiva Psicanalítica
Por Eliane dos Anjos Grizotti.
1. Introdução
O luto é, tradicionalmente, associado à morte de um ente querido, mas e se o luto não fosse apenas pela morte? E se ele estivesse presente em cada mudança abrupta, em cada despedida silenciosa, em cada país que deixamos para trás?
A dimensão psíquica do luto vai muito além da perda de um ente querido. A psicanálise nos ajuda a entender o luto como um processo de perda e ressignificação, que ocorre não apenas com a morte física, mas também com mudanças abruptas, transições, separações, migrações e rupturas afetivas.
Para imigrantes e expatriados, o luto não é um evento, mas um estado prolongado, um território invisível de perdas que se acumulam dia após dia e moldam sua existência. É a tentativa, tantas vezes frustrada, de se encaixar em um idioma que não é o seu, numa cultura diferente e, quem sabe, hostil, no vazio de quem se despede de uma identidade que um dia foi familiar.
Este artigo busca explorar as profundezas desse doloroso processo para além da morte, além de propor uma reflexão de como imigrantes e expatriados vivem essa experiência psíquica, muitas vezes sem nomeá-la. A perda do pertencimento, do idioma, das raízes e dos laços culturais pode ser tão dolorosa quanto a perda de um ente querido.
2. Luto e Melancolia em Freud
Há momentos em que a dor não desaparece, mas se camufla. A ausência do que foi perdido se infiltra no cotidiano, transformando-se em sombra, em silêncio, em um peso que não se nomeia. Parece se fundir em nossas entranhas e que passa a fazer parte de nós mesmos.
Freud, em Luto e Melancolia (1917), descreve o luto como um processo necessário, doloroso, mas natural. O sujeito, ao perder algo significativo, precisa retirar gradualmente sua libido daquele objeto para poder seguir adiante. Infelizmente, nem sempre o sujeito consegue simbolizar sua perda ou encontrar o espaço necessário para elaborar sua dor.
Na imigração, o luto pode se tornar melancolia, pois o exilado não apenas perde seu território físico, mas também a possibilidade de retornar à identidade que possuía. O sujeito deixa em sua terra, agora distante, uma versão de si que já não funciona da mesma forma.
Esse luto se torna um processo interno, muitas vezes silencioso, onde o indivíduo não chora a morte de alguém, mas o desaparecimento de si próprio.
3. O Luto na Perspectiva Lacaniana
Para Lacan, o luto também vai além da perda de um ente querido. Mas é interpretado como um movimento de castração simbólica, onde o sujeito precisa se reorganizar em torno do que lhe falta e lhe falta muito. O expatriado vive um luto contínuo: pela língua que já não domina, mesmo que fosse reconhecido como fluente em seu país de origem; pelas ruas que já não reconhece, mesmo que tenha visitado como turista; em não saber como funciona no dia a dia o sistema de saúde quando está doente, pelo pertencimento que nunca mais será o mesmo em nenhum lugar que esteja.
É por isso que muitos imigrantes carregam a sensação de exílio subjetivo. Eles vivem entre dois mundos: um que deixou de existir e outro no qual ainda não se encaixam completamente. O desejo se redefine, pois aquilo que antes era natural (a cultura, os vínculos, a língua) agora se torna um objeto perdido. O novo país não substitui o antigo, apenas reafirma a ausência do que se foi.
4. Lutos
As histórias de imigrantes e expatriados revelam múltiplas faces do luto, que ultrapassa a dimensão física. É um processo que se transforma em um estado psicológico, uma ausência que não se preenche.
Muitos imigrantes deixam suas terras movidos pelo desejo de um futuro melhor. Mas a realidade nem sempre corresponde às expectativas e, assim, se inicia o processo de luto simbólico pelo que imaginaram que seriam, mas nunca conseguiram alcançar.
Outro luto importante, diz respeito ao luto pela identidade cultural, pois a perda de referência cultural gera um processo de alienação. O sujeito tenta se adaptar, aprender a língua, mas o vazio persiste: há uma parte de si que não pode ser traduzida.
O luto pela versão que ficou no país de origem, também é outro ponto de dificuldade a ser enfrentado, pois traz a sensação de pertencer a lugar algum. A sensação de não pertencer ao novo local invade a casa e a vida como um todo. E no retorno, apesar da casa estar lá, no mesmo endereço, no país de origem, também não se sente pertencendo... Justamente por isso, o luto não é pela distância, mas pela constatação de que jamais poderão ser exatamente quem eram antes de partir.
5. Conclusão
Diante do olhar perdido de quem se despede de um relacionamento, uma carreira, uma posição ou um lar, o questionamento persiste: mas, afinal, como se elabora um luto por algo que ainda existe, mas não pode mais ser vivido da mesma forma?
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que o luto não é sobre esquecer. É sobre aprender a viver sem aquilo que foi perdido.
O luto para além da morte nos ensina que a dor da perda se manifesta de muitas formas. Para imigrantes e expatriados, ele pode ser um processo solitário, vivido sem nome, sem rituais, sem despedidas. Mas compreendê-lo é fundamental para ressignificá-lo.
A psicanálise nos oferece caminhos para essa reconstrução. Freud nos mostra que o luto é um processo de retirada da libido, e Lacan nos ensina que a falta não precisa ser um vazio sem fim, mas um motor para o desejo. Para aqueles que vivem longe de casa, longe de si mesmos, a jornada da ressignificação pode ser longa, mas não precisa ser solitária.
A psicanálise lacaniana nos ensina que o luto não se trata apenas de aceitar a ausência do outro, mas também de lidar com a perda de parte de nós mesmos. Freud, por sua vez, nos lembra que há uma linha tênue entre o luto saudável e a melancolia, onde o sujeito se prende àquilo que perdeu, incapaz de seguir em frente, em uma relação não saudável com a perda.
O luto não é apenas sobre quem morreu. É sobre tudo o que deixamos para trás. Contudo, não é só a saudade que dói, mas a certeza de que, ainda que volte, nunca mais será quem já foi.